quinta-feira, agosto 10, 2006

Muros, muralhas e prisões

as visões subjectivas também são raras !

João Caraça
Director do Departamento de Ciência da Fundação Calouste Gulbenkian


diário de notícias em 10/08/2006

De vez em quando, a superfície do globo cobre-se de novos traçados. Primeiro foram os rios, depois os trilhos e os caminhos, as estradas, os caminhos-de--ferro e as auto-estradas. Mas outros traçados surgem também, de natureza diferente. Chamam-se muros e muralhas e servem para proteger a propriedade privada, bem como o regime político conjuntural que a regula.

As muralhas mostram-se eficazes ao impedirem que os valores imobiliários que encerram sejam apoderados por alheios durante um certo intervalo de tempo (sempre efémero, em termos históricos). Já a mesma eficácia não existe quanto à garantia de autonomia para as pessoas que vivem à sua sombra. Mesmo que, ao princípio, os muros lhes dêem uma impressão de segurança, em breve se transformam em barreiras mentais que toldam a percepção. Os muros são prisões. As muralhas servem apenas para impedir que os de dentro se juntem aos de fora e subvertam o regime de propriedade vigente.

Todas as muralhas acabam por ser desmanteladas. Que o diga a Grande Muralha da China, que manteve o povo chinês durante séculos na crença das delícias e da sublime origem do Império do Meio. Ou os recintos amuralhados medievais, quase todos tomados por cerco, à parte honrosas excepções. Mas que depressa se tornaram obsoletos debaixo das salvas de canhão que anunciavam a modernidade. Ou ainda o Muro de Berlim, defendendo um regime incapaz de manter o quadro simbólico donde extraíra no passado a sua coesão. Todos acabaram do mesmo modo. No chão ou reaproveitados em novas edificações pelas sociedades que lhes sucederam.

Parece que a lição deveria ter sido aprendida, mas tal não aconteceu, curiosamente, ou talvez não. O Governo federal americano constrói célere um muro na fronteira com o México para supostamente diminuir a imigração de "hispânicos". Também os israelitas se afadigam a aprimorar o muro que os segrega dos outros palestinianos. O prof. Immanuel Wallerstein alerta-nos para este facto, num dos seus recentes comentários quinzenais (http/fbc.binghamton.edu/commentr.htm). Que razões poderão levar dois Estados, que se mostram tão racionais na concepção de equipamento científico para uso militar, a ignorar grosseiramente a evidência empírica que decerto conhecem? Que capacidade estratégica demonstram na liderança para um desenvolvimento sustentado dos povos que dirigem?

A resposta é simples: as supostas elites em causa sentem-se perdidas e tentam enganar o tempo, sem olhar à tragédia e ao sofrimento humanos que impõem pelo uso da força, até ao fim.

No fundo, apenas enganam umas tantas almas piedosas, que acreditam na moralidade dos direitos de propriedade que herdaram.

É sabido que as almas não desaparecem facilmente deste mundo.

Mas dizem também os entendidos que são infecundas.


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